segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Amor e seu tempo

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

Carlos Drummond de Andrade


sábado, 20 de novembro de 2010

A invenção de Orfeu

A ilha ninguém achou
porque todos a sabíamos
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim
mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

[...]

Jorge de Lima

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Ouro Preto

Tu és a vila dos amores
Onde as ruas de prata
Ofuscam o brilho das estrelas.
São douradas tuas igrejas
Que de longe escrevem
As luzes dos lampiões.
Os casais que por ti passeiam
Levam consigo desejos
De serem eternos
E eterno o amor
Que distante se vê chegando
E se enraizando em vossas praças.
Oh aurora que se aproxima
A tecnologia não apagará
Dessa vila a história
Dos seus infindos dias
Mas ratificará em todas as memórias
A importância do seu legado.
Os poetas que daqui surgiram
Escreveram nos pergaminhos da vida
A graça das ilusões
Das paixões
Que em ti foram sacrificadas.
E eu um pobre mortal
Escrevo nestas entrelinhas
O colóquio envaidecido
De conhecer-te de perto.

William Figueiredo

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O gato chinês
espera sentado
pela sua vez

Eugénia Tabosa

sábado, 23 de outubro de 2010

Poetas Velhos

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.

Paulo Leminski

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amor é de lei

Dívida de amor se paga em beijo
Não há perdedor, nada se perde
Não se planta flor num azulejo
Nem se colhe sol se a noite impede

Dúvida de amor é como um vício
Depende da dor, nos escraviza
Inferniza o ser, vira um suplício
Congela o calor, nada se cria

Dádiva de amor nunca se avisa
Simplesmente dá de mão beijada
Chega de repente, vem do nada
E tudo se transforma em alegria

Paulinho da Viola e Sérgio Natureza

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sátira a Um Burro

Ser homem e ser burro,
ambos (o homem e o burro),
num só corpo fundidos,
não quer dizer que a besta,
que ao mesmo tempo
fala e zurra,
não seja asno
que preste e sirva.

Nenhum homem quer ser burro,
nem aceita que o é,
mesmo quando o que se vê
é um jumento
de sela e cabresto.

Sendo jerico o homem,
aos pinotes e coices, sem a inteligência,
que é o que falta aos burros,
mesmo assim é relevante o burro,
pois que ser asno, mesmo homem também
(embora não o seja inteiro e completo),
é ser diferente de outro homem
que é homem somente, sendo que este,
ao contrário do burro,
só fala, não zurra.

Ser jerico, asno ou jumento
não é diferente de ser burro.
No entanto, o burro (este burro
apenas e não outro burro qualquer)
é um burro importante,
dado que, a um tempo, ser homem e burro
é um modo de ser diferente,
é ser outra coisa.
Mal por mal, é melhor ser outra coisa
do que ser coisa nenhuma.

E, fazendo assim justiça ao burro,
mais não digo, ponto final.

Arménio Vieira