sexta-feira, 30 de abril de 2010

Nós

tenhamos para as coisas
à noite
a paz das resignações
tenhamos (sem loisas)
se amanhece
a turbulência das aves

sejamos múltiplos
mais que dois
depois que enternece
triplos de tudo
bocados
(só bocados) do infinito

sejamos rebeldes
com poesia
o derrubar muralhas
com trombetas
e já agora
tambores
vozes
danças
taças de vinho

rebeldes
com taças de vinho
embriagados de amor

tenhamos para as coisas
o ninho de nada

sejamos azuis
como os poetas
e doutras cores...


Filinto Elísio

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Não há fonte que não beba da fronte deste homem

I
Nas rugas deste homem
Circulam
estradas de todos os pés que emigram
Quebram-se
vivas! as ondas de todas pátrias
Anulam-se
de perfil! as chinas de todas muralhas
Na mão bíblica
No humor bíblico deste homem
crepitam de joelhos
Desertos & catedrais
Onde
deus & demónio
jogam
noite e dia
a sua última cartada
E do pó da ilha à mó de pedra
Não há relâmpago
Que não morda a nudez deste homem
Nudez de liberta!
Que a dor germina
E o espaço exulta
E pela ogiva
ogiva do olho
Não há poente
Que não seja
Uma oração de sapiência
Sobre a face deste homem
o povo ergueu a praça pública
E os tambores transportam
o rosto deste homem
Até à boca das ribeiras
E ao redor
os vulcões respeitam
o silêncio deste homem


I I


Não há chuva
Que não lamba o osso de tal homem
À porta da ilha
Diz o sal de toda a saliva
O sol ondula oceanos no sangue deste homem
Oh cereal altivo! vertical & probo
Ainda ontem
antes do meio-dia
O vento punha velas na viola deste homem
Hoje!
A viola
De tal dor é sumarenta
E projecta
sobre as almas
a seiva
De uma árvore imensa
Oh oceanos! que ladram à boca das tabernas
Se o sangue deste homem
é tambor no coração da ilha
O coração deste homem
é corda no violão do mundo
E os joelhos
rodas que vão! hélices que sobem
com ilhas no interior


I I I


Sombras sobre a colina Rosto sobre o povoado
Quando
pastor & gado jogam à cabra-cega
E chifres de sol
projectam
cidadelas no ocidente
O poente galopa a maré-alta
E ergue
"À taça da noite
Sobre as têmporas deste homem"
Oh noite verde! oh noite violada
Que a noite não apague
A memória das cicatrizes
E cicatrizes de ontem
Sejam
Sementes de hoje
Para sementeira E floresta de amanhã
Como Noé
As espécies conhecem
A sílaba E a substância deste homem
Não há milho
Que não ame o umbigo deste homem
Não há raiz
Que não rasgue a carne deste homem
E na fome pública deste homem
Cresce
a ave no voo E a gema na casca
Cresce
o cabo d'enxada E a cintura da terra
Cresce
a porta do sol E o alfabeto da pedra verde
Não há fonte
Que não beba da fronte de tal homem
Que
A erecção deste homem é redonda
E tem o peso da terra grávida.

Corsino Fortes

Carne

Que importa se a distância estende entre nós
léguas e léguas
Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
O mesmo céu nos cobre
E a mesma terra liga nossos pés.
No céu e na terra é a tua carne que palpita
Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
Na carícia violenta do teu beijo.
Que importa a distância e que importa a montanha
Se tu és a extensão da carne
Sempre presente?

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Só pamódi

O sol descreve em arco as cores,
Que outrora foram olhares e gracejos,
Rápidos dizeres, vitrais, ladrilhos, estores
E o psicadélico das músicas nas catedrais …

De uma janela recuada e solitária,
Em solilóquios de tantos solfejos,
Reapareces, sombreada e decalcada,
Pura imagem no vórtice do pensamento…

Mas não eras tu tão-somente,
Quando as flores, os frutos e as nuvens,
Pasmos de espumas iam-se em pano e seda…

Natureza morta e viva, feita e reciclada,
Vezes sem conta em que eras, ó tecitura,
O meu soletrar nas calhas…só pamódi!

Filinto Elísio
in Das Frutas Serenadas

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou

Adélia Prado

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pesadelo

Não sei que torvo ser, que espírito insolente,
que tenebroso gênio evadido às florestas
em visionária noite acorda-me funestas
multidões que a dormir jaziam-me na mente.

Toscas aparições de atormentadas testas
com um olho só a olhar alucinadamente
braços avulsos, mãos em garra, de repente,
caíram-me de mim - rindo impudentes estas,

aquelas a estender-me uns dedos asquerosos,
gritando, escancarando as fauces, fulminando
meu roto coração com seu olhar nefando.

E, à luz tentacular de globos pavorosos,
abre-me o pesadelo as portas, lado a lado,
mostrando-me a espantosa imagem do Pecado.

Anderson Braga Horta. Soneto Antigo

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!

Mario Quintana

domingo, 25 de abril de 2010

Vinho de Rosas

Dançamos, mareados de há séculos. Deslizas nos acordes dos inconfidentes e que tais. Eu, noutro balanço, faço-me de ti dolente como um Shadow Dancer. O lençol branco, branco, branco, estampa um Óscar Niemayer. O seu traço matricial, quase em linha de água. Sergey Eiseintein fez o mesmo com os seus filmes. Orson Wells esboçava-os também. Nós cá estamos. Parfum, parfum. Dançamos. Cada milímetro de chão é terra batida sem sentido. Mas com sentimento. Tu és filha do sussurro e eu, prole, destes ventos tristes. Vário outro lugar que não aquele. Noite barroca, noite também aqui antiquíssima. De campanários mudos e sisudos. De suspiros De siso consentido ao riso breve. Ó telhados das Gerais, ainda outrora fostes à morte dos ilustres, permitis ora que dancemos pelos umbrais. Mareados de vinho e de viagem. De todos os longínquos mares do corpo. Epopeia dos arfares, que estes ares são, para nós, o inebriar das horas. Inebriemo-nos. Em verso livre, tudo livre. Mareados em seu reverso…

sábado, 24 de abril de 2010

Depus a máscara e vi-me ao espelho

Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volta à personalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Molho de Manel Antône

A substância, que se entorna para a boca
Quando tão louca de coentros, leguminosa
Ou, ao que se toca, quão perigosa nuvem
De viagem que fizemos,
O que demos em destemor,
O que te faltaria por comer
O dizer-te dengosa, com primor
O resto sendo nós
O molho de nós...em troca!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Molho de São Nicolau

De tuas mãos a beleza brota
suave, cadente e aromatizada

Comer, beber, rezar
Poesia comestível

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Se

Se não houvesse
mar, nem vento,
nem flor, nem planta,
nem lar, nem gente?

E tudo o que é
deixasse de ser:
o dia e a noite,
o macho e a fêmea,
a dor e o gozo.

E as estrelas fossem
palavras sem nexo
e o tempo vazio
de vozes e gritos

Haveria Deus,
sem mais,
amando coisa nenhuma,
para si mesmo
sábio e santo.

Sonhador solitário,
sonhando que sonho?
Sem mundo, só Ele,
redondo como um zero.

Arménio Vieira

A maçã no escuro

(...)
UM pouco espantada, o calor da tarde então envolveu-a, inquieto, pesado. Nada se transformara no campo que continuou cheio de imóvel sol. No entanto por um instante a moça não o reconheceu e não se reconheceu, e se se olhasse ao espelho veria grandes olhos olhando-a mas não se veria. Com a acuidade da estranheza, notou na própria mão uma veia que havia anos não notava, e viu que tinha dedos magros e curtos, e viu uma saia cobrindo os joelhos. E sob tudo o que ela era, sentiu alguma coisa: sua própria atenção. Um pouco aflita, olhou em torno. Por uma obscura necessidade de preservação, estava procurando recuperar no campo aquele minuto em que ela ousadamente aceitara amar o homem: procurava recuperar o minuto para destruí-lo. Mas, estonteada, talvez soubesse que também a necessidade de destruir amor era o próprio amor porque amor é também luta contra amor, e se ela o soube é porque uma pessoa sabe. Procurou, desesperada e ofendida, aquele minuto que já agora nunca mais ela saberia se fora fatal a ponto de submetê-la – ou se nesse minuto ela própria fora tão extremamente livre que, numa gratuidade que já era pecado e que depois se pagava, ela o apontara.

Procurou recuperar o instante para destruí-lo, mas isso foi penoso e inútil. Pois tudo acontecera rápido demais. E a moça ficou apenas com o seguinte: com um balde cheio de caroços de milho, sem ter sequer contra o que lutar.

E tão abandonada, e tão solitária, como se tudo o que no futuro se fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória que há muito já se perdera para sempre entre as marteladas. Essas marteladas que a moça, agora emergida e espantada, ouviu mais fortes e mais próximas, fatais, fatais, fatais. Sua estranha liberdade: ela escolhera ir de encontro ao fatal. Era a gravidade pela qual esperara a vida toda. De novo um senso de tragédia a envolveu. E, estranhamente, dentro desta ela era apenas anônima.

Olhou então as moscas sobre a roseira. A graça do que ela estava vivendo encheu-a de modéstia cristã, e ela humildemente procurou apoio moral nas moscas azuladas e a rosa trêmula pela mosca que acabara de deixá-la trêmula. Depois que por um instante o mundo inteiro se tornara seu cúmplice, a moça fora largada por sua própria conta.


A maçã no escuro, Clarice Lipector.
. Clarice Lipector.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Ortônimo

Quando lavro um poema
Me louvo e me alquebranto
Eu me apodero do espírito
De Álvaro de Campos

Em mim boiam detritos
Do sangue português
E o transe mediúnico
De Antônio Mora

Em Rafael Baldaia
Me vejo por inteiro
A voz e o coração
De Alberto Caeiro.


Dimas Macedo