quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sátira a Um Burro

Ser homem e ser burro,
ambos (o homem e o burro),
num só corpo fundidos,
não quer dizer que a besta,
que ao mesmo tempo
fala e zurra,
não seja asno
que preste e sirva.

Nenhum homem quer ser burro,
nem aceita que o é,
mesmo quando o que se vê
é um jumento
de sela e cabresto.

Sendo jerico o homem,
aos pinotes e coices, sem a inteligência,
que é o que falta aos burros,
mesmo assim é relevante o burro,
pois que ser asno, mesmo homem também
(embora não o seja inteiro e completo),
é ser diferente de outro homem
que é homem somente, sendo que este,
ao contrário do burro,
só fala, não zurra.

Ser jerico, asno ou jumento
não é diferente de ser burro.
No entanto, o burro (este burro
apenas e não outro burro qualquer)
é um burro importante,
dado que, a um tempo, ser homem e burro
é um modo de ser diferente,
é ser outra coisa.
Mal por mal, é melhor ser outra coisa
do que ser coisa nenhuma.

E, fazendo assim justiça ao burro,
mais não digo, ponto final.

Arménio Vieira

domingo, 26 de setembro de 2010

Reconstituição

Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
qual era a bebida...
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.

A saudade era dela.
A bebida era o beijo.

Elisa Lucinda

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Cerva

Sonhei que o cervo ferido pedia perdão
ao caçador frustrado.
(Nemen Ibn el Barud)


De repente tu
recostada em um claro bosque
manjar sereno
intacto?

Estiquei o arco
e disparei
sobre ti
rápidas palavras
rede para caçar o inascível.

Porém nenhuma letra
foi salpicada por teu sangue:
entre um adjetivo e outro
saltaste
mais veloz que a luz da flecha.

Uma vez mais
minha palavra não alcançou a Poesia.

Ilesa
sobre o ramo de uma árvore
porém com lágrimas nos olhos
me suplicavas:
"Tenta novamente,
tenta novamente".

Eduardo Langagne

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

No deserto
acontece a aurora.
Alguém o sabe.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dirás

dirás:

das flores,
para lá das texturas
e do aroma que se exala
das cores,
o colheres
da vida secreta das plantas
e seus aguares imperceptíveis...

dirás:

dos amores,
nos seus lagares de cama
e da sua lama em chuva,
os arfares
de tanta coisa inaudita
para o teu estio do quotidiano...

ou não dirás nada:
nem das flores,
nem dos amores.

Dizê-los
era nomeá-los
...para quê?