domingo, 30 de maio de 2010

Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados

Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados,
um garbo senhoril, nevada alvura;
metal de voz que enleva de doçura,
dentes de aljôfar, em rubi cravados;

fios de ouro, que enredam meus cuidados,
alvo peito, que cega de candura;
mil prendas e (o que é mais que formosura)
uma graça que rouba mil agrados;

mil extremos de preço mais subido
encerra a linda Márcia, a quem of’reço
um culto que nem dela ‘inda é sabido;

tão pouco de mim julgo que a mereço,
que enojá-la não quero de atrevido
co’as penas que por ela em vão padeço.


Filinto Elysio
(nome arcádico do Poeta e Padre Francisco Manuel do Nascimento)
No verão às quatro da manhã
o sono do amor ainda dura.
Sob o arvoredo se evapora
o odor da noite de festa.

Ali, na vasta cocheira,
das Hespérides ao sol,
já, em mangas de camisa,
se movem os Carpinteiros.

Em seus Desertos de seiva,
preparam os belos painéis
em que a cidade terá
seus falsos céus.

Aos atraentes operários,
súditos de um rei da Babilônia,
Vênus deixa um instante os Amantes
coroada por suas almas.

Ó Rainha dos Pastores,
traz a aguardente aos que trabalham
para manter-lhes as forças até o banho
do meio-dia no mar.

Artur Rimbaud - tradução de Paulo Hecker Filho

sábado, 29 de maio de 2010

CARTA A JOÃO VÁRIO NO CHÃO DA NOSSA TRISTEZA

Sim sabíamos que aos terraços
da suficiência não ascenderíamos
nem pelo patamar da benevolência
pois na urdidura dos pactos
pressentimos a fraqueza da carne
//
e no entanto disseram-nos
a matéria da dor é por demais sublime
para que seja apenas um dom dos ímpios
mas glorificaremos o que lá do alto
nos aperta as jugulares
//
ou desacoitados gritaremos pelo ressuscitado
enquanto a danação nos afiança o governo
das províncias onde espumeja o manancial
//
outubro sabemo-lo é nosso inimigo
monda o páramo numa corveia infrene
ringe presságios no ar salobre
quando a incandescência era ainda
para nós um alfabeto a engendrar
//
e no entanto por sob transactos céus
magnificamo-lo por entre a severidade
do pranto e a altivez do riso
embora o celeste plumitivo houvesse decretado
a loquacidade a única arte permitida
//
mas tu piério escriba de giba enganchada
aos pináculos da insolvência aguardas
como a esses que magnificam o glabro arroto
da nortada o relâmpago que ateia o rastilho
//
à lucidez — árido mister que já não solve
as nocturnas visitações ou esse donairoso sol
que pelos meses fora propagandeia o pobre
país onde sílaba a sílaba se morre
a benefício dos estereofónico demónios
toda a tarde soltando acrílicas lágrimas
à silente fífia dos metais


José Luíz Tavares

sexta-feira, 28 de maio de 2010

verdes vindo à face da luz
na beirada de cada folha
a queda de uma gota

Guimarães Rosa

quarta-feira, 26 de maio de 2010

ela de calcinha vermelha
estudava biologia
eu nu (co) lhia poesia

Jovino Machado

terça-feira, 25 de maio de 2010

na barra sul do horizonte
estacionavam cúmulus
esfiapando sorvete de coco

Guimarães Rosa

domingo, 23 de maio de 2010

CONSTRUÇÃO NA VERTICAL

Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.

Arménio Vieira

sábado, 22 de maio de 2010

Luar

De brejo em brejo,
os sapos avisam:
-A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
rola, desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da Via-Láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Para Ti

Foi para ti que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano de tudo
sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só a
mando de uma só vida


Mia Couto
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Mundo pequeno

O albatroz prepara
breve passeio
de Pólo a Pólo...

Guimarães Rosa
in: Magma

quarta-feira, 19 de maio de 2010

halo de tua lembrança
enovela teu perfume
esfuma do pout-pourri

Filinto Elísio

terça-feira, 18 de maio de 2010

entre as folhas
de um livro-de-reza
um amor-perfeito cai

Guimarães Rosa

segunda-feira, 17 de maio de 2010

hai kai ocidental

Meio-dia,
as portas da garagem
Crescem sobre os cadeados

Jack Kerouac

domingo, 16 de maio de 2010

vento transparente
nu
vens

Alexandre Brito

Na margem de um rio

São assim os amigos, frágeis, como dunas.
Altas labaredas os consomem
e dizem nomes, recados de amor.

Nada os habita quando damos as mãos,
os rostos recortados no frio azul
para reparar o que nos une e o que nos afasta.

São assim os amigos, vêm
com uma ferida móvel entre os dedos
juto de mim. Perdidos eu os encontro,
aos amigos,ao que por ser frágil perdura
como uma claridade um nome branco.

Francisco José Viegas

Poema

...nenhuma das alternativas
me seduz -
nem a voz do deserto
nem a mão que conduz
nem o sonho desperto
nem o lustro da luz
nenhuma das alternativas
me convence -
nem a bola que rola
nem o time que vence
nem a chuva que chora
nem a água que benze
nenhuma das alternativas
me desperta -
nem a borda que alarga
nem a corda que aperta
nem a boca que amarga
ou o açúcar que empedra...

Arnaldo Antunes

sábado, 15 de maio de 2010

Comboio malandro

O comboio malandro passa
passa sempre c'oa força dele
u-u hi-hi
te-que-tem te-que-tem
nas janelas muita gente
ah boa viagée adeus homée
n'ganas bonitas
quintandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender
u-u hi-hi
aquele vagon de grades tem bois
mu mu mu
tem outro igual
como este dos bois
leva gente muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

tem bois que morre no viagée
mas preto não morre
canta como é criança
mulondé iakessoa!
uadibalée uadibalée uadibalée
esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro passa
passa sem respeito
u-u hi-hi
com muito fumo no trás
tem-que-tem
tem-que-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos preto e queima
esse comboio malandro
já queimou meu milho

Se na lavra do milho
tem pacaça
se eu faço armadilha no chão
se na lavra tem Kiombo
se eu tiro espingarda de Kimbundo
e mato neles!

Mas se vai lá fogo
de comboio malandro deixa
só fica fumo
muito fumo mesmo...

Mas espera só
quando esse comboio malandro descarrilar
e os branco chamar os preto p'ra empurrar
eu vou... mas não empurro

Nem com o chicote
finjo só que faço força
comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho!

António Jacinto

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Canção do amor imprevisto

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.

Mario Quintana

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Acerca do Amor

Do amor só digo isto:
o sol adormece ao crepúsculo
no oferecido colo do poente
e nada é tão belo e íntimo.

0 resto é business dos amantes.
Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira.

Filinto Elísio

Orixás

Viajei por tantos mares
atravessei tantos mundos
tornei-me um deus desterrado
dentro de um outro terreiro
um a um perdi meus reinos
meus tesouros meus assuntos
mas serei um deus guerreiro.
Mesmo que um navio negreiro
me leve pra outro mundo
sou oxum e iemanjá
sou os ventos de iansã
beleza, força, coragem
todas na grande viagem
vem junto obá e nanã
sou ogum e sou xangô
sou oxóssi o caçador
ferro, fogo e paciência
levados pra terra estranha
sem hoje, só, amanhã

Alice Ruiz

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 11 de maio de 2010

O nome e as coisas

Para quê estragar a simples existência das coisas com nomes
arbitrários?
Um gato não sabe que se chama gato
E Deus não sabe que se chama Deus
("Eu sou quem sou" - diz Ele no livro do Gênesis)
Eu sonho
E com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como deve ser a linguagem das plantas e dos animais!
Só de adjetivos, sem explicação alguma,
Mas com muito mais poesia...

Mário Quintana

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Uma lembrancinha do tempo

Desde pequena,
a poesia escolheu meu coração.
Através de sua inconfundível mão,
colheu-o e o fez
se certificando da oportunidade
e da profundeza da ocasião.
Como era um coração ainda raso,
de criança que se deixa fácil levar pela mão,
sabia ela que o que era fina superfície clara até então,
seria um dia o fundo misterioso do porão.
Desde menina
a poesia fala ao meu coração.
Escuto sua prosa,
quase toda em verso.
Escuto-a como se fosse ainda miúda e depois,
só depois, é que dou minha opinião.
Desconfio que minha mãe me entregou a ela.
A suspeita, a desconfiança pode ter sido fato,
se a mão materna, que já aos onze
me levou à aula de declamação,
não for de minha memória uma delicada ilusão.
Desde pirralha e sapeca
a poesia, esperta, me chama ao quintal;
me seqüestra apontando ao meu
olho o crepúsculo,
fazendo-me reparar, dentro
da paisagem graúda,
o sutil detalhe do minúsculo.
Distingue pra mim a figura do seu fundo,
o retrato de sua moldura
e me deu muito cedo a loucura
de amar as tardes com devoção.
Talvez por isso eu me
entrelace desesperada às saias
dos acontecimentos,
me abrace, me embarace às suas pernas
almejando detê-los em mim,
querendo fixá-los, porque sei que passarão.
A poesia que desde sempre,
desde quando analfabeta das letras
ainda eu era
me freqüenta, faz com que eu escreva
pra trazer lembrança de cada instante.
Assim até hoje ela me tenta e se tornou
um jeito de eu fazer durar o durante,
de eu esticar o enquanto da vida
e fazer perdurar o seu momento.
Desse encontro eu trago um verso como
um chaveirinho trazido de um passeio a uma praia turista,
um postal vindo de um museu renascentista,
um artesanato de uma bucólica vila,
uma fotografia gótica de uma arquitetura de convento,
uma xicrinha,
um pratinho com data e nome do estado daquele sentimento.
É isso a poesia: um souvenir moderno,
um souvenir eterno do tempo.

Elisa Lucinda
Zambézia, Moçambique, setembro de 2005.

domingo, 9 de maio de 2010

História Antiga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 8 de maio de 2010

O rio quando antilira

O rio explode. Quando as mãos
dos anjos vêm varrer a névoa.
Ungido primeiro da tristeza,
escurece-lhe a voz
nas locas onde canta o pez.

Escuto-lhe os decibéis da ira
quando por uma tarde navegável
solta seu manancial de gritos:
já não é essa mansidão que ronronam
os líricos, mas um aguilhão
saltando às têmporas.

Mar e margem amparam o fragor
que leva o desalinho às vísceras.
Na máquina do poema
é lenta a combustão que devolve
o tejo ao afago que tantas metáforas
sussurrou aos zelosos funcionários da musa.

Não há, porém, métrica que cinja
a voz de um rio quando suspira nas entranhas
avivando um passado que é cisco na memória.

José Luís Tavares

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?

Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?

(Este é o meu leilão.)

Cecília Meireles

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Têtêia

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Aquela desaforada
Filha d'Antónha que vendia cuscuz
Na Porta de Madêral
E de nhô Piduca
Que era catraieiro
—Venham comigo!

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Bonitona e desaforada

Que dava que falar pelo Carnaval
Porque além de bonitona e desaforada
Era luxénta e dançadêra
—Venham comigo!

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Que fez filho com Léla de Bia de Jonzóna
Que fugiu para a Venezuela
—Venham comigo!

Venham comigo
E vamos bradar junto a praia
(Inconsoladamente — como meninos!...)
Que nao vendemos Têtêia...

Vamos levar todas as nossas lágrimas ao mar
Para que as roças nos devolvam Têtêia.

Onésimo Silveira

A Língua Mãe

Não sinto o mesmo gosto nas palavras:
oiseau e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?
Seria porque eu não tenha amor pela língua
de Flaubert?
Mas eu tenho.
(Faço este registro
porque tenho a estupefação
de não sentir com a mesma riqueza as
palavras oiseau e pássaro)
Penso que seja porque a palavra pássaro em
mim repercute a infância.
E oiseau não repercute.
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
nela o menino que ia de tarde pra
debaixo das árvores a ouvir os pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinham oiseaux
Só tinha pássaros.
É o que me ocorre sobre língua mãe.

Manoel de Barros

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Os teus pés

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.
Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada purpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

Pablo Neruda

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Me deixas louca

Quando caminho pela rua lado a lado com você
Me deixas louca
E quando escuto o som alegre do teu riso
Que me dá tanta alegria
Me deixas louca

Me deixas louca quando vejo mais um dia
Pouco a pouco entardecer
E chega a hora de ir pro quarto escutar
As coisas lindas que começas a dizer
Me deixas louca

Quando me pedes por favor que nossa lâmpada se apague
Me deixas louca
Quando transmites o calor de tuas mãos
Pro meu corpo que te espera
Me deixas louca

E quando sinto que teus braços se cruzaram em minhas costas
Desaparecem as palavras
Outros sons enchem o espaço
Você me abraça, a noite passa
E me deixas louca

(Armando Manzanero. Versão: Paulo Coelho)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Reconhecimento à Loucura

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe,
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda
mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura,
és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu,
é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.


José de Almada Negreiros

Soneto das Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
inda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas e areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas,vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos;
- O! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!


Arthur Rimbaud (trad. de Augusto de Campos)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O alastro das foices

Em tempos de traição/ as paisagens são belas.
Heiner Müller, O Anjo do Desespero



Do fundo assomam as áscuas
e nos tubos do pensamento lavra
uma limalha estásica,
pronta à convulsão.
Toco na cabeça
a tuberosa calcificação da loucura,
uma faixa sísmica
encavilhada entre as têmporas.
Jorge Melícias

domingo, 2 de maio de 2010

Minas

ANDAR
ANDOR
ARDOR
AR D'OURO
PRETO

há muito para subir em Ouro Preto

mesmo que o tempo tarde
andar devagar, bem devagar
escalar ruas
passo a passo
olhar para o chão
enquanto as montanhas
impassíveis
disputam nosso olhar
é no passar
que se põe o ardor
acima e abaixo
aos pés, ao céu
rochas para caminhar
mar de rochas
montanhas de pedra

há muito para descer em Ouro Preto
o frio das alturas
impregnado desse spleen
que não se explica
e a cada passo
uma lição de paciência
e a cada olhar
uma lição de silêncio
e a cada casa, porta, beiral
uma lição de história
que aqui perdura
dura, dura rocha
pedra sobre pedra
tudo que aqui se passou
também ficou
e fica em nosso passo
nessa rua
a ressoar
que a história
é a pré-história
de nós mesmos

que passamos

Alice Ruiz

UM GATO LÁ NO ALTO

Quando e onde
não me lembro já.
Mas o certo é que a gente falava
da cauda longa dos cometas
e do calor intenso
que habita o núcleo das estrelas.

Meus olhos
estavam fitos no espaço
e de repente
vi um gato
pulando lesto e contente.

Eu juro que vi um gato
saltando de uma nuvem para outra
até ficar oculto
num floco todo branco.

Confesso: tive ciúme.
“Deixe esse trapo
e salte cá para baixo”
– ia eu gritar ao gato
mas lembrei-me ainda a tempo
que a distância era muita
e que nenhum bichano entende
a conversa cá da gente.

Ainda que ele ouvisse:
o espírito de um gato
é como o canto de um poeta
– não atende nem escuta
a ordem de ninguém.

Engraçado!
Um gato lá no alto
entre os braços duma nuvem.
Talvez fosseum bruxo disfarçado
ou a alma de um vate
vogando no espaço.


Arménio Vieira

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 1 de maio de 2010

fruta caída




fruta caída
ao lado da estrada:
pausa na ida

Carlos Seabra

Soberania

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.
Manoel de Barros, in Memórias inventadas - A terceira infância