sábado, 20 de novembro de 2010

A invenção de Orfeu

A ilha ninguém achou
porque todos a sabíamos
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim
mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

[...]

Jorge de Lima

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Ouro Preto

Tu és a vila dos amores
Onde as ruas de prata
Ofuscam o brilho das estrelas.
São douradas tuas igrejas
Que de longe escrevem
As luzes dos lampiões.
Os casais que por ti passeiam
Levam consigo desejos
De serem eternos
E eterno o amor
Que distante se vê chegando
E se enraizando em vossas praças.
Oh aurora que se aproxima
A tecnologia não apagará
Dessa vila a história
Dos seus infindos dias
Mas ratificará em todas as memórias
A importância do seu legado.
Os poetas que daqui surgiram
Escreveram nos pergaminhos da vida
A graça das ilusões
Das paixões
Que em ti foram sacrificadas.
E eu um pobre mortal
Escrevo nestas entrelinhas
O colóquio envaidecido
De conhecer-te de perto.

William Figueiredo

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O gato chinês
espera sentado
pela sua vez

Eugénia Tabosa

sábado, 23 de outubro de 2010

Poetas Velhos

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.

Paulo Leminski

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amor é de lei

Dívida de amor se paga em beijo
Não há perdedor, nada se perde
Não se planta flor num azulejo
Nem se colhe sol se a noite impede

Dúvida de amor é como um vício
Depende da dor, nos escraviza
Inferniza o ser, vira um suplício
Congela o calor, nada se cria

Dádiva de amor nunca se avisa
Simplesmente dá de mão beijada
Chega de repente, vem do nada
E tudo se transforma em alegria

Paulinho da Viola e Sérgio Natureza

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sátira a Um Burro

Ser homem e ser burro,
ambos (o homem e o burro),
num só corpo fundidos,
não quer dizer que a besta,
que ao mesmo tempo
fala e zurra,
não seja asno
que preste e sirva.

Nenhum homem quer ser burro,
nem aceita que o é,
mesmo quando o que se vê
é um jumento
de sela e cabresto.

Sendo jerico o homem,
aos pinotes e coices, sem a inteligência,
que é o que falta aos burros,
mesmo assim é relevante o burro,
pois que ser asno, mesmo homem também
(embora não o seja inteiro e completo),
é ser diferente de outro homem
que é homem somente, sendo que este,
ao contrário do burro,
só fala, não zurra.

Ser jerico, asno ou jumento
não é diferente de ser burro.
No entanto, o burro (este burro
apenas e não outro burro qualquer)
é um burro importante,
dado que, a um tempo, ser homem e burro
é um modo de ser diferente,
é ser outra coisa.
Mal por mal, é melhor ser outra coisa
do que ser coisa nenhuma.

E, fazendo assim justiça ao burro,
mais não digo, ponto final.

Arménio Vieira

domingo, 26 de setembro de 2010

Reconstituição

Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
qual era a bebida...
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.

A saudade era dela.
A bebida era o beijo.

Elisa Lucinda

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Cerva

Sonhei que o cervo ferido pedia perdão
ao caçador frustrado.
(Nemen Ibn el Barud)


De repente tu
recostada em um claro bosque
manjar sereno
intacto?

Estiquei o arco
e disparei
sobre ti
rápidas palavras
rede para caçar o inascível.

Porém nenhuma letra
foi salpicada por teu sangue:
entre um adjetivo e outro
saltaste
mais veloz que a luz da flecha.

Uma vez mais
minha palavra não alcançou a Poesia.

Ilesa
sobre o ramo de uma árvore
porém com lágrimas nos olhos
me suplicavas:
"Tenta novamente,
tenta novamente".

Eduardo Langagne

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

No deserto
acontece a aurora.
Alguém o sabe.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dirás

dirás:

das flores,
para lá das texturas
e do aroma que se exala
das cores,
o colheres
da vida secreta das plantas
e seus aguares imperceptíveis...

dirás:

dos amores,
nos seus lagares de cama
e da sua lama em chuva,
os arfares
de tanta coisa inaudita
para o teu estio do quotidiano...

ou não dirás nada:
nem das flores,
nem dos amores.

Dizê-los
era nomeá-los
...para quê?

sábado, 28 de agosto de 2010

O chão é cama

O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Venho de um Sul

Vim ao leste
dimensionar a noite
em gestos largos
que inventei no sul
pastoreando mulolas e anharas
claras
como coxas recordadas em Maio.

Venho de um sul
medido claramente
em transparência de água fresca de amanhã.
De um tempo circular
liberto de estações.
De uma nação de corpos transumantes
confundidosna cor da crosta acúlea
de um negro chão elaborado em brasa.

Ruy Duarte de Carvalho

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Esplendores

Toda compreensão é poesia,
clarão inaugural que névoa densa
faz parecer velados diamantes.
Em pequenos bocados,
como quem dá comida às criancinhas,
a beleza retém seu vórtice.
São águas de compaixão
e eu sobrevivo.

Adelia Prado

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

De alma aberta

Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.

Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.

De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.

Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.

Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.

Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.

Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.

Natália Correia

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Meu destino

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.

Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.

Não te procurei, não me procuraste -
íamos sozinhos por estradas diferentes.

Indiferentes, cruzamos.
Passavas com o fardo da vida...

Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.

Esse dia foi marcado
com a pedra branca da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

Cora Coralina

domingo, 15 de agosto de 2010

A Vida Anterior

Longos anos vivi sob um pórtico alto
De gigantes pilares, nobres, dominadores,
Que a luz, vinda do mar, esmaltava de cores,
Tornando-o semelhante às grutas de basalto.

Chegavam até mim os ecos da harmonia
Do orfeão colossal das ondas chamejantes,
Ligando a sua voz às tintas deslumbrantes
Da luz crepuscular que em meus olhos fugia.

Em meio do esplendor do céu, do mar, dos lumes,
Foi-me dado gozar, voluptuosas calmas!
Escravos seminus, rescendendo perfumes,

Minha fronte febril refrescavam com palmas,
E tinham por missão apenas descobrir
A misteriosa dor que eu andava a carpir.


Charles Baudelaire

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sê tu a palavra

1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

-O que é o amor? - perguntou ela.
-Este lago, sem ti, é uma superfície de águas paradas ou onduladas. Contigo, é um lago. É isso o amor!

Pepetela, in: Muana Puó

terça-feira, 3 de agosto de 2010

vão dos beirais

tudo se aquieta quando me ficas
no vão mais silencioso dos beirais
e nos pequenos bulícios da noite…
brasa do tempo
acende quando passas
no pensamento

Carlos Seabra

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

voyage

não (se) ver, de fio a pavio, além da água;
esquecer-se (de), nesse navio, ser outra:
o lago, os alpes, os deuses e os cisnes...

domingo, 1 de agosto de 2010

revelação

vejo assustada
a imagem na água:
sempre quis ser a outra

sábado, 31 de julho de 2010

Respiro o teu corpo

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A hora da partida

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 24 de julho de 2010

Sonho

Sonho com a manhã clara
de teus seios
e rendo-me humilde
diante da verdade
do teu corpo nu

Idealizar-te
e ofertar-me caricias proibidas
ir beber feito outro
na fonte longínqua
da minha dor

E minha dor é teu silêncio!…

Ovídio Martins

terça-feira, 13 de julho de 2010

Poeminha amoroso

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

Cora Coralina

sábado, 10 de julho de 2010

J'habite une douleur

Ne laisse pas le soin de gouverner ton coeur à ces tendresses parentes de l'automne auquel elles empruntent sa placide allure et son affable agonie. L'oeil est précoce à se plisser. La souffrance connaît peu de mots. Préfère te coucher sans fardeau: tu rêveras du lendemain et ton lit te sera léger. Tu rêveras que ta maison n'a plus de vitres. Tu es impatient de t'unir au vent, au vent qui parcourt une année en une nuit. D'autres chanteront l'incorporation mélodieuse, les chairs qui ne personnifient plus que la sorcellerie du sablier. Tu condamneras la gratitude qui se répète. Plus tard, on t'identifiera à quelque géant désagrégé, seigneur de l'impossible.
Pourtant.
Tu n'as fait qu'augmenter le poids de ta nuit. Tu es retourné à la pêche aux murailles, à la canicule sans été. Tu es furieux contre ton amour au centre d'une entente qui s'affole. Songe à la maison parfaite que tu ne verras jamais monter. A quand la récolte de l'abîme? Mais tu as crevé les yeux du lion. Tu crois voir passer la beauté au-dessus des lavandes noires...
Qu'est-ce qui t'a hissé, une fois encore, un peu plus haut, sans te convaincre?
Il n'y a pas de siège pur.
René Char

sábado, 3 de julho de 2010

Versos

VersosVersos! Versos! Sei lá o que são versos…
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.

Versos!… Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!… Sei eu lá também que são…
Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez…

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!…

Florbela Espanca

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Cantiga De Amigo

Reparastes, donas, quando noutro dia
o meu namorado comigo falou
como se queixava? Tanto se queixou
que lhe dei o cinto. Dei-lhe o que podia;
e pede-me agora o que não devia.
Vistes (antes nunca tal coisa se visse!)
que à força de muito, muito se queixar,
fez-me da camisa o cordão tirar;
o cordão lhe dei; no que fiz tolice;
e o que me pede agora, antes não pedisse.
Das minhas ofertas, João de Guilhade,
enquanto as quiser, não o privarei,
que muitas e boas já dele alcancei;
nem lhe negarei minha lealdade.
Mas de outras loucuras tem ele vontade.
Cantiga De Maldizer
Nunca tal pulhice vi
como esta que um infanção
me faz; com indignação
a todos dizer ouvi:
o infanção, quando quer,
vai para a cama com a mulher
e nem se lembra de mim.
Nunca receio terá
deste que vota ao desdém.
À mulher, a quem quer bem,
sempre filhos lhe fará;
e seus, com desplante diz,
serem os três filhos que fiz.
Leve o demo o que me dá!
Folga ele e peno eu;
não sei de dor semelhante:
deita-se com a minha amante
no leito que diz que é seu
e toca a dormir em paz;
e se filho ou filha faz
não reconhece que é meu.

João Garcia de Guilhade
(trovador português do séc. XIII)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza…
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!…

Florbela Espanca

domingo, 27 de junho de 2010

Um amor depois de outro

Virá o tempo
em que, exultante,
hás de saudar-te ao chegar
à tua própria porta, em teu espelho,
e cada um sorrirá à saudação do outro,
e dirás, senta-te aqui. Come.

Amarás novamente o estranho que tu eras.
Ofereces vinho. Dás pão. E tua cabeça de volta
a si mesma, ao estranho que toda vida
te amou, que, por causa de outrem,
desconsideras, e que te conhece de cor.

Retira as cartas de amor da estante,
as fotografias, as anotações desesperadas,
descasca tua imagem do espelho.
Senta-te. Refestela-te com tua vida.

Dereck Walcott

sábado, 26 de junho de 2010

O Caboclo d'Água

No lombo de pedra da cachoeira clara
as águas se ensaboam
antes de saltar.

E lá embaixo, piratingas, pacus e dourados
dão pulos de prata, de ouro e de cobre,
querendo voltar, com medo do poço
da quarta volta do rio,
largo, tranqüilo, tão chato e brilhante,
deitado a meio bote
como uma boipeva branca.

Na água parada,
entre as moitas de sarãs e canaranas,
o puraquê tem pensamentos
de dois mil volts.

À sombra dos mangues,
que despetalam placas vermelhas,
dois botos zarpam, resfolengando,
com quatro jorros,
a todo vapor.

E os jacarés cumpridos, de olhos esbugalhados,
soltam latidos , e vão fugindo,
estabanados, às rabanadas, espadanando,
porque do fundo
do grande remanso, onde ninguém acha o fundo,
vem um rugido , vem um gemido,
tão rouco e feio, que as ariranhas
pegam no choro, como meninos.

O canoeiro
que vem no remo, desprevenido,
ouve o gemido e fica a tremer.
É o caboclo d’água,
todo peludo, todo oleoso,
que vem subindo lá das profundas,
e a mão enorme,
preta e palmada,
de garras longas,
pega o rebordo da canoinha
quase a virar.

E o canoeiro, de facão pronto,
fica parado, rezando baixo,
sempre a tremer

Crescendo d’água ,lá vem a máscara,
negra e medonha,
de um gorila de olhar humano,
o Caboclo d’água
ameaçador.

E o canoeiro já não tem medo,
porque o Caboclo o olhou de frente,
todo molhado,
com olhos tristonhos,
rosto choroso,
quase falando,
quase perguntando
pela ingrata Iara,
que, já faz tempo, se foi embora,
que há tantos anos o abandonou...

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Frémito do Meu Corpo a Procurar-te

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...

Florbela Espanca

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O doce de Vitalina

Vitalina faz cocada
com mais alma do que coco

Uma semana de criação
onde leite açúcar e coco
não têm importância
como não têm importância
tição fogo e brasa

O mais importante
é que Vitalina
se ponha no caco e vá na cocada
e que o sétimo dia seja para descanso
como fez Deus na criação

Batista de Lima
Quando duas pessoas fazem amor
Não estão apenas fazendo amor
Estão dando corda ao relógio do mundo

Mario Quintana

terça-feira, 22 de junho de 2010

Idade

Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.

Fiama Hasse Pais Brandão

domingo, 20 de junho de 2010

Como inútil taça cheia

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágoa figura
Só para ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Aprendamos, Amor

Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.

José Saramago
in "Os Poemas Possíveis"
Salvo alguns casos, como os daqueles citados moribundos de olhar penetrante que a enxergaram ao pé da cama com o aspecto clássico de um fantasma envolto em panos brancos ou, como a proust parece ter sucedido, na figura de uma mulher gorda vestida de preto, a morte é discreta, prefere que não se dê pela sua presença, especialmente se as circunstâncias a obrigam a sair à rua. Em geral crê-se que a morte, sendo, como gostam de afirmar alguns, a cara de uma moeda de que deus, de outro lado, é a cruz, será, como ele, por sua própria natureza, invisível. Não é bem assim. Somos testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a perguntas, rodeada de paredes caiadas ao longo das quais se arrumam, entre teias de aranha, umas quantas dúzias de ficheiros com grandes gavetões recheados de verbetes. Compreende-se portanto que a morte não queira aparecer às pessoas naquele preparo, em primeiro lugar por razões de estética pessoal, em segundo lugar para que os infelizes transeuntes não se finem de susto ao darem de frente com aquelas grandes órbitas vazias no virar de uma esquina. Em público, sim, a morte torna-se invisível, mas não em privado, como o puderam comprovar, no momento crítico, o escritor marcel proust e o moribundo de vista penetrante. Já o caso de deus é diferente. Por muito que se esforçasse nunca conseguiria tornar-se visível aos olhos humanos, e não é porque não fosse capaz, uma vez que a ele nada é impossível, é simplesmente porque não saberia que cara pôr para se apresentar aos seres que supõe ter criado, sendo o mais provável que não os reconhecesse, ou então, talvez ainda pior, que não o reconhecessem eles a ele. Há também quem diga que, para nós, é uma grande sorte que deus não queira aparecer-nos por aí, porque o pavor que temos da morte seria como uma brincadeira de crianças ao lado do susto que apanharíamos se tal acontecesse. Enfim, de deus e da morte não se têm contado senão histórias, e esta não é mais que uma delas.
José Saramago in: As Intermitências da Morte. 2005. São Paulo: Companhia das Letras. p. 145-146.

Sal no 45

Quis o Filho do Homem, quando pelos desertos caminhava, que os seus cordeiros fossem mansos de espírito e que a linguagem do amor, como uma neblina, permeasse nos dias do antanho. Quis também que o Verbo fosse o sussurro do começo, o disparo do primeiro instante com que a cronométrica flecha, destinada a ser aquela do Cupido, cumpriria o sétimo dia da Criação. Tendo feito o Mundo - baixando depois sobre as águas, as terras, os ares e os ventos (aliás, somos átomos e átimos dos aguares e dos ventares sobre a terra e o mar), Cristo ou Oxalá, energias de Javé, Jah, Alá, Zeus e/ou Deus - tendo feito o Mundo, dizia-te, o Filho do Homem deixou-nos os salmos de lembrança. Dir-te-ia, no rasgo de louco que Ele me concede, o sal no 45. Senti-o assim nas negras e ágeis mãos (dos orixás quem sabe?) que sobre o pano-de-mina os búzios te pressentiam...
Filinto Elísio

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Salmo 45

Meu coração transborda em belo poema.
Eu dedico a minha obra a um rei.
Minha língua é ágil pena de escritor.
Você é o mais belo dos homens
e a graça escorre de seus lábios,
porque Deus o abençoa para sempre.
Prenda a sua espada junto à coxa, ó valente,
com majestade e esplendor.
Cavalgue vitorioso, pela causa da verdade, da pobreza e da justiça.
Que sua direita lhe ensine a fazer proezas.
Suas flechas são agudas, os povos se rendem a você,
e os inimigos do rei perdem a coragem.

terça-feira, 15 de junho de 2010

FALA!

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p'la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Lunático

Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos...
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando...
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto...
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua...
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho...

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Troco

se
a
obra
é
a
soma
das
penas
pago
mas
quero
meu
troco
em
poemas

Alice Ruiz

Ter ou não ter namorado? Eis a questão

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil. Mas namorado, é muito difícil.
Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção dele não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira: basta um olhar de compreensão ou mesmo aflição.
Quem não tem namorado não é quem não tem um amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes; mesmo assim pode não ter nenhum namorado.

Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.
Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria.
Não tem namorado quem faz pactos de amor com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.
Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada, quando fala junto ou descobre a meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, fazer sesta abraçado, fazer compra junto. Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.
Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beiras d'água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.
Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de seu bem ser paquerado. Não tem namorado quem ama sem gostar, quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.
Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado quem ama sem se dedicar,- quem namora sem brincar,- quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.
Não tem namorado quem confunde solidão com o ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pensando duzentos quilos de grilos e de medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar.

Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela.
Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.
Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.
Enlou-cresça.
Artur da Távola

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Viver sempre também cansa

"Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerems
em imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.
"E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..."

José Gomes Ferreira

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

João Cabral de Melo Neto

terça-feira, 8 de junho de 2010

mar se a tua & nua

em tudo o que sejas
(estribilho)
sou
vicioso de tuas vogais
(esse meu cair das pétalas)
sou
onde lhe param sílabas
sou teu
poemas sem palavras
mar se a tua
& nua
lua no farol das águas
in_tacta
& frag_menta
mente_facta
- poesia!

sou-ta
sou-te
sou
ti
(e em ti)
sou-to
(rosa no seu lado de cá?)
sou
tu em
(que me sabes)
despe_talar


Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o U

segunda-feira, 7 de junho de 2010

tocar sobre teu corpo
ao silêncio das estrelas
um acorde de guitarra

Lisa Carducci

domingo, 6 de junho de 2010

Manhã inflor

as héveas murcharam
desertas de folhas
desertas de flores

propositadamente
nem só o sangue mas também a seiva
nem só a criança mas também a pétala
nem só o homem mas também a planta
nem só a carne mas também a lenha
propositadamente

tudo o hamadricida flagelou

a beleza da flor
a inocência da criança
a certeza dos campos
o aconchego duma sombra

mas nos covis a vida continuou
e o apelo à luta redobrou

as héveas murcharam
e com as héveas
a manhã inflor
a terra nua

mas ainda a vida
nos covis continua

Oswaldo Osório

sábado, 5 de junho de 2010

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

Rosto de ti

Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgia
se de rostos teus
de adeuses faz tempo
e beijos bem vindos
de primeiras de troca
e de último vagão.

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tato e sabor.

Sem um tremer de mais
me abraço a tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de ti.

Estou cheio de sombras
de noites [...]


Mário Benedetti

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A bunda que engraçada

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Monangambé

Naquela roça grande
não tem chuva
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;

Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue
feitas seiva.

O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo?
Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?

Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer?
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande
- ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído
nas minhas bebedeiras...

António Jacinto

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
Na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e
tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes,
onde não há hospital,
nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
os 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã
em Ipanema.

Ferreira Gullar

terça-feira, 1 de junho de 2010

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar
E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.

Guilherme de Almeida

domingo, 30 de maio de 2010

Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados

Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados,
um garbo senhoril, nevada alvura;
metal de voz que enleva de doçura,
dentes de aljôfar, em rubi cravados;

fios de ouro, que enredam meus cuidados,
alvo peito, que cega de candura;
mil prendas e (o que é mais que formosura)
uma graça que rouba mil agrados;

mil extremos de preço mais subido
encerra a linda Márcia, a quem of’reço
um culto que nem dela ‘inda é sabido;

tão pouco de mim julgo que a mereço,
que enojá-la não quero de atrevido
co’as penas que por ela em vão padeço.


Filinto Elysio
(nome arcádico do Poeta e Padre Francisco Manuel do Nascimento)
No verão às quatro da manhã
o sono do amor ainda dura.
Sob o arvoredo se evapora
o odor da noite de festa.

Ali, na vasta cocheira,
das Hespérides ao sol,
já, em mangas de camisa,
se movem os Carpinteiros.

Em seus Desertos de seiva,
preparam os belos painéis
em que a cidade terá
seus falsos céus.

Aos atraentes operários,
súditos de um rei da Babilônia,
Vênus deixa um instante os Amantes
coroada por suas almas.

Ó Rainha dos Pastores,
traz a aguardente aos que trabalham
para manter-lhes as forças até o banho
do meio-dia no mar.

Artur Rimbaud - tradução de Paulo Hecker Filho

sábado, 29 de maio de 2010

CARTA A JOÃO VÁRIO NO CHÃO DA NOSSA TRISTEZA

Sim sabíamos que aos terraços
da suficiência não ascenderíamos
nem pelo patamar da benevolência
pois na urdidura dos pactos
pressentimos a fraqueza da carne
//
e no entanto disseram-nos
a matéria da dor é por demais sublime
para que seja apenas um dom dos ímpios
mas glorificaremos o que lá do alto
nos aperta as jugulares
//
ou desacoitados gritaremos pelo ressuscitado
enquanto a danação nos afiança o governo
das províncias onde espumeja o manancial
//
outubro sabemo-lo é nosso inimigo
monda o páramo numa corveia infrene
ringe presságios no ar salobre
quando a incandescência era ainda
para nós um alfabeto a engendrar
//
e no entanto por sob transactos céus
magnificamo-lo por entre a severidade
do pranto e a altivez do riso
embora o celeste plumitivo houvesse decretado
a loquacidade a única arte permitida
//
mas tu piério escriba de giba enganchada
aos pináculos da insolvência aguardas
como a esses que magnificam o glabro arroto
da nortada o relâmpago que ateia o rastilho
//
à lucidez — árido mister que já não solve
as nocturnas visitações ou esse donairoso sol
que pelos meses fora propagandeia o pobre
país onde sílaba a sílaba se morre
a benefício dos estereofónico demónios
toda a tarde soltando acrílicas lágrimas
à silente fífia dos metais


José Luíz Tavares

sexta-feira, 28 de maio de 2010

verdes vindo à face da luz
na beirada de cada folha
a queda de uma gota

Guimarães Rosa

quarta-feira, 26 de maio de 2010

ela de calcinha vermelha
estudava biologia
eu nu (co) lhia poesia

Jovino Machado

terça-feira, 25 de maio de 2010

na barra sul do horizonte
estacionavam cúmulus
esfiapando sorvete de coco

Guimarães Rosa

domingo, 23 de maio de 2010

CONSTRUÇÃO NA VERTICAL

Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.

Arménio Vieira

sábado, 22 de maio de 2010

Luar

De brejo em brejo,
os sapos avisam:
-A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
rola, desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da Via-Láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

João Guimarães Rosa

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Para Ti

Foi para ti que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano de tudo
sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só a
mando de uma só vida


Mia Couto
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Mundo pequeno

O albatroz prepara
breve passeio
de Pólo a Pólo...

Guimarães Rosa
in: Magma

quarta-feira, 19 de maio de 2010

halo de tua lembrança
enovela teu perfume
esfuma do pout-pourri

Filinto Elísio

terça-feira, 18 de maio de 2010

entre as folhas
de um livro-de-reza
um amor-perfeito cai

Guimarães Rosa

segunda-feira, 17 de maio de 2010

hai kai ocidental

Meio-dia,
as portas da garagem
Crescem sobre os cadeados

Jack Kerouac

domingo, 16 de maio de 2010

vento transparente
nu
vens

Alexandre Brito

Na margem de um rio

São assim os amigos, frágeis, como dunas.
Altas labaredas os consomem
e dizem nomes, recados de amor.

Nada os habita quando damos as mãos,
os rostos recortados no frio azul
para reparar o que nos une e o que nos afasta.

São assim os amigos, vêm
com uma ferida móvel entre os dedos
juto de mim. Perdidos eu os encontro,
aos amigos,ao que por ser frágil perdura
como uma claridade um nome branco.

Francisco José Viegas

Poema

...nenhuma das alternativas
me seduz -
nem a voz do deserto
nem a mão que conduz
nem o sonho desperto
nem o lustro da luz
nenhuma das alternativas
me convence -
nem a bola que rola
nem o time que vence
nem a chuva que chora
nem a água que benze
nenhuma das alternativas
me desperta -
nem a borda que alarga
nem a corda que aperta
nem a boca que amarga
ou o açúcar que empedra...

Arnaldo Antunes

sábado, 15 de maio de 2010

Comboio malandro

O comboio malandro passa
passa sempre c'oa força dele
u-u hi-hi
te-que-tem te-que-tem
nas janelas muita gente
ah boa viagée adeus homée
n'ganas bonitas
quintandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender
u-u hi-hi
aquele vagon de grades tem bois
mu mu mu
tem outro igual
como este dos bois
leva gente muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

tem bois que morre no viagée
mas preto não morre
canta como é criança
mulondé iakessoa!
uadibalée uadibalée uadibalée
esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro passa
passa sem respeito
u-u hi-hi
com muito fumo no trás
tem-que-tem
tem-que-tem

Comboio malandro
o fogo que sai no corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos preto e queima
esse comboio malandro
já queimou meu milho

Se na lavra do milho
tem pacaça
se eu faço armadilha no chão
se na lavra tem Kiombo
se eu tiro espingarda de Kimbundo
e mato neles!

Mas se vai lá fogo
de comboio malandro deixa
só fica fumo
muito fumo mesmo...

Mas espera só
quando esse comboio malandro descarrilar
e os branco chamar os preto p'ra empurrar
eu vou... mas não empurro

Nem com o chicote
finjo só que faço força
comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho!

António Jacinto

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Canção do amor imprevisto

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.

Mario Quintana

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Acerca do Amor

Do amor só digo isto:
o sol adormece ao crepúsculo
no oferecido colo do poente
e nada é tão belo e íntimo.

0 resto é business dos amantes.
Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira.

Filinto Elísio

Orixás

Viajei por tantos mares
atravessei tantos mundos
tornei-me um deus desterrado
dentro de um outro terreiro
um a um perdi meus reinos
meus tesouros meus assuntos
mas serei um deus guerreiro.
Mesmo que um navio negreiro
me leve pra outro mundo
sou oxum e iemanjá
sou os ventos de iansã
beleza, força, coragem
todas na grande viagem
vem junto obá e nanã
sou ogum e sou xangô
sou oxóssi o caçador
ferro, fogo e paciência
levados pra terra estranha
sem hoje, só, amanhã

Alice Ruiz

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 11 de maio de 2010

O nome e as coisas

Para quê estragar a simples existência das coisas com nomes
arbitrários?
Um gato não sabe que se chama gato
E Deus não sabe que se chama Deus
("Eu sou quem sou" - diz Ele no livro do Gênesis)
Eu sonho
E com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como deve ser a linguagem das plantas e dos animais!
Só de adjetivos, sem explicação alguma,
Mas com muito mais poesia...

Mário Quintana

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Uma lembrancinha do tempo

Desde pequena,
a poesia escolheu meu coração.
Através de sua inconfundível mão,
colheu-o e o fez
se certificando da oportunidade
e da profundeza da ocasião.
Como era um coração ainda raso,
de criança que se deixa fácil levar pela mão,
sabia ela que o que era fina superfície clara até então,
seria um dia o fundo misterioso do porão.
Desde menina
a poesia fala ao meu coração.
Escuto sua prosa,
quase toda em verso.
Escuto-a como se fosse ainda miúda e depois,
só depois, é que dou minha opinião.
Desconfio que minha mãe me entregou a ela.
A suspeita, a desconfiança pode ter sido fato,
se a mão materna, que já aos onze
me levou à aula de declamação,
não for de minha memória uma delicada ilusão.
Desde pirralha e sapeca
a poesia, esperta, me chama ao quintal;
me seqüestra apontando ao meu
olho o crepúsculo,
fazendo-me reparar, dentro
da paisagem graúda,
o sutil detalhe do minúsculo.
Distingue pra mim a figura do seu fundo,
o retrato de sua moldura
e me deu muito cedo a loucura
de amar as tardes com devoção.
Talvez por isso eu me
entrelace desesperada às saias
dos acontecimentos,
me abrace, me embarace às suas pernas
almejando detê-los em mim,
querendo fixá-los, porque sei que passarão.
A poesia que desde sempre,
desde quando analfabeta das letras
ainda eu era
me freqüenta, faz com que eu escreva
pra trazer lembrança de cada instante.
Assim até hoje ela me tenta e se tornou
um jeito de eu fazer durar o durante,
de eu esticar o enquanto da vida
e fazer perdurar o seu momento.
Desse encontro eu trago um verso como
um chaveirinho trazido de um passeio a uma praia turista,
um postal vindo de um museu renascentista,
um artesanato de uma bucólica vila,
uma fotografia gótica de uma arquitetura de convento,
uma xicrinha,
um pratinho com data e nome do estado daquele sentimento.
É isso a poesia: um souvenir moderno,
um souvenir eterno do tempo.

Elisa Lucinda
Zambézia, Moçambique, setembro de 2005.

domingo, 9 de maio de 2010

História Antiga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 8 de maio de 2010

O rio quando antilira

O rio explode. Quando as mãos
dos anjos vêm varrer a névoa.
Ungido primeiro da tristeza,
escurece-lhe a voz
nas locas onde canta o pez.

Escuto-lhe os decibéis da ira
quando por uma tarde navegável
solta seu manancial de gritos:
já não é essa mansidão que ronronam
os líricos, mas um aguilhão
saltando às têmporas.

Mar e margem amparam o fragor
que leva o desalinho às vísceras.
Na máquina do poema
é lenta a combustão que devolve
o tejo ao afago que tantas metáforas
sussurrou aos zelosos funcionários da musa.

Não há, porém, métrica que cinja
a voz de um rio quando suspira nas entranhas
avivando um passado que é cisco na memória.

José Luís Tavares

Leilão de Jardim

Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?

Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?

Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?

(Este é o meu leilão.)

Cecília Meireles

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Têtêia

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Aquela desaforada
Filha d'Antónha que vendia cuscuz
Na Porta de Madêral
E de nhô Piduca
Que era catraieiro
—Venham comigo!

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Bonitona e desaforada

Que dava que falar pelo Carnaval
Porque além de bonitona e desaforada
Era luxénta e dançadêra
—Venham comigo!

Rapazes da "Estrela da Marinha"
Se vocês ainda se lembram de Têtêia
Que fez filho com Léla de Bia de Jonzóna
Que fugiu para a Venezuela
—Venham comigo!

Venham comigo
E vamos bradar junto a praia
(Inconsoladamente — como meninos!...)
Que nao vendemos Têtêia...

Vamos levar todas as nossas lágrimas ao mar
Para que as roças nos devolvam Têtêia.

Onésimo Silveira

A Língua Mãe

Não sinto o mesmo gosto nas palavras:
oiseau e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?
Seria porque eu não tenha amor pela língua
de Flaubert?
Mas eu tenho.
(Faço este registro
porque tenho a estupefação
de não sentir com a mesma riqueza as
palavras oiseau e pássaro)
Penso que seja porque a palavra pássaro em
mim repercute a infância.
E oiseau não repercute.
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
nela o menino que ia de tarde pra
debaixo das árvores a ouvir os pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinham oiseaux
Só tinha pássaros.
É o que me ocorre sobre língua mãe.

Manoel de Barros

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Os teus pés

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.
Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada purpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

Pablo Neruda

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Me deixas louca

Quando caminho pela rua lado a lado com você
Me deixas louca
E quando escuto o som alegre do teu riso
Que me dá tanta alegria
Me deixas louca

Me deixas louca quando vejo mais um dia
Pouco a pouco entardecer
E chega a hora de ir pro quarto escutar
As coisas lindas que começas a dizer
Me deixas louca

Quando me pedes por favor que nossa lâmpada se apague
Me deixas louca
Quando transmites o calor de tuas mãos
Pro meu corpo que te espera
Me deixas louca

E quando sinto que teus braços se cruzaram em minhas costas
Desaparecem as palavras
Outros sons enchem o espaço
Você me abraça, a noite passa
E me deixas louca

(Armando Manzanero. Versão: Paulo Coelho)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Reconhecimento à Loucura

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe,
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda
mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura,
és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu,
é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.


José de Almada Negreiros

Soneto das Vogais

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
inda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas e areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas,vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos;
- O! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!


Arthur Rimbaud (trad. de Augusto de Campos)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O alastro das foices

Em tempos de traição/ as paisagens são belas.
Heiner Müller, O Anjo do Desespero



Do fundo assomam as áscuas
e nos tubos do pensamento lavra
uma limalha estásica,
pronta à convulsão.
Toco na cabeça
a tuberosa calcificação da loucura,
uma faixa sísmica
encavilhada entre as têmporas.
Jorge Melícias

domingo, 2 de maio de 2010

Minas

ANDAR
ANDOR
ARDOR
AR D'OURO
PRETO

há muito para subir em Ouro Preto

mesmo que o tempo tarde
andar devagar, bem devagar
escalar ruas
passo a passo
olhar para o chão
enquanto as montanhas
impassíveis
disputam nosso olhar
é no passar
que se põe o ardor
acima e abaixo
aos pés, ao céu
rochas para caminhar
mar de rochas
montanhas de pedra

há muito para descer em Ouro Preto
o frio das alturas
impregnado desse spleen
que não se explica
e a cada passo
uma lição de paciência
e a cada olhar
uma lição de silêncio
e a cada casa, porta, beiral
uma lição de história
que aqui perdura
dura, dura rocha
pedra sobre pedra
tudo que aqui se passou
também ficou
e fica em nosso passo
nessa rua
a ressoar
que a história
é a pré-história
de nós mesmos

que passamos

Alice Ruiz

UM GATO LÁ NO ALTO

Quando e onde
não me lembro já.
Mas o certo é que a gente falava
da cauda longa dos cometas
e do calor intenso
que habita o núcleo das estrelas.

Meus olhos
estavam fitos no espaço
e de repente
vi um gato
pulando lesto e contente.

Eu juro que vi um gato
saltando de uma nuvem para outra
até ficar oculto
num floco todo branco.

Confesso: tive ciúme.
“Deixe esse trapo
e salte cá para baixo”
– ia eu gritar ao gato
mas lembrei-me ainda a tempo
que a distância era muita
e que nenhum bichano entende
a conversa cá da gente.

Ainda que ele ouvisse:
o espírito de um gato
é como o canto de um poeta
– não atende nem escuta
a ordem de ninguém.

Engraçado!
Um gato lá no alto
entre os braços duma nuvem.
Talvez fosseum bruxo disfarçado
ou a alma de um vate
vogando no espaço.


Arménio Vieira

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 1 de maio de 2010

fruta caída




fruta caída
ao lado da estrada:
pausa na ida

Carlos Seabra

Soberania

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.
Manoel de Barros, in Memórias inventadas - A terceira infância

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Nós

tenhamos para as coisas
à noite
a paz das resignações
tenhamos (sem loisas)
se amanhece
a turbulência das aves

sejamos múltiplos
mais que dois
depois que enternece
triplos de tudo
bocados
(só bocados) do infinito

sejamos rebeldes
com poesia
o derrubar muralhas
com trombetas
e já agora
tambores
vozes
danças
taças de vinho

rebeldes
com taças de vinho
embriagados de amor

tenhamos para as coisas
o ninho de nada

sejamos azuis
como os poetas
e doutras cores...


Filinto Elísio

Das Utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Não há fonte que não beba da fronte deste homem

I
Nas rugas deste homem
Circulam
estradas de todos os pés que emigram
Quebram-se
vivas! as ondas de todas pátrias
Anulam-se
de perfil! as chinas de todas muralhas
Na mão bíblica
No humor bíblico deste homem
crepitam de joelhos
Desertos & catedrais
Onde
deus & demónio
jogam
noite e dia
a sua última cartada
E do pó da ilha à mó de pedra
Não há relâmpago
Que não morda a nudez deste homem
Nudez de liberta!
Que a dor germina
E o espaço exulta
E pela ogiva
ogiva do olho
Não há poente
Que não seja
Uma oração de sapiência
Sobre a face deste homem
o povo ergueu a praça pública
E os tambores transportam
o rosto deste homem
Até à boca das ribeiras
E ao redor
os vulcões respeitam
o silêncio deste homem


I I


Não há chuva
Que não lamba o osso de tal homem
À porta da ilha
Diz o sal de toda a saliva
O sol ondula oceanos no sangue deste homem
Oh cereal altivo! vertical & probo
Ainda ontem
antes do meio-dia
O vento punha velas na viola deste homem
Hoje!
A viola
De tal dor é sumarenta
E projecta
sobre as almas
a seiva
De uma árvore imensa
Oh oceanos! que ladram à boca das tabernas
Se o sangue deste homem
é tambor no coração da ilha
O coração deste homem
é corda no violão do mundo
E os joelhos
rodas que vão! hélices que sobem
com ilhas no interior


I I I


Sombras sobre a colina Rosto sobre o povoado
Quando
pastor & gado jogam à cabra-cega
E chifres de sol
projectam
cidadelas no ocidente
O poente galopa a maré-alta
E ergue
"À taça da noite
Sobre as têmporas deste homem"
Oh noite verde! oh noite violada
Que a noite não apague
A memória das cicatrizes
E cicatrizes de ontem
Sejam
Sementes de hoje
Para sementeira E floresta de amanhã
Como Noé
As espécies conhecem
A sílaba E a substância deste homem
Não há milho
Que não ame o umbigo deste homem
Não há raiz
Que não rasgue a carne deste homem
E na fome pública deste homem
Cresce
a ave no voo E a gema na casca
Cresce
o cabo d'enxada E a cintura da terra
Cresce
a porta do sol E o alfabeto da pedra verde
Não há fonte
Que não beba da fronte de tal homem
Que
A erecção deste homem é redonda
E tem o peso da terra grávida.

Corsino Fortes

Carne

Que importa se a distância estende entre nós
léguas e léguas
Que importa se existe entre nós muitas montanhas?
O mesmo céu nos cobre
E a mesma terra liga nossos pés.
No céu e na terra é a tua carne que palpita
Em tudo eu sinto o teu olhar se desdobrando
Na carícia violenta do teu beijo.
Que importa a distância e que importa a montanha
Se tu és a extensão da carne
Sempre presente?

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Só pamódi

O sol descreve em arco as cores,
Que outrora foram olhares e gracejos,
Rápidos dizeres, vitrais, ladrilhos, estores
E o psicadélico das músicas nas catedrais …

De uma janela recuada e solitária,
Em solilóquios de tantos solfejos,
Reapareces, sombreada e decalcada,
Pura imagem no vórtice do pensamento…

Mas não eras tu tão-somente,
Quando as flores, os frutos e as nuvens,
Pasmos de espumas iam-se em pano e seda…

Natureza morta e viva, feita e reciclada,
Vezes sem conta em que eras, ó tecitura,
O meu soletrar nas calhas…só pamódi!

Filinto Elísio
in Das Frutas Serenadas

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou

Adélia Prado

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pesadelo

Não sei que torvo ser, que espírito insolente,
que tenebroso gênio evadido às florestas
em visionária noite acorda-me funestas
multidões que a dormir jaziam-me na mente.

Toscas aparições de atormentadas testas
com um olho só a olhar alucinadamente
braços avulsos, mãos em garra, de repente,
caíram-me de mim - rindo impudentes estas,

aquelas a estender-me uns dedos asquerosos,
gritando, escancarando as fauces, fulminando
meu roto coração com seu olhar nefando.

E, à luz tentacular de globos pavorosos,
abre-me o pesadelo as portas, lado a lado,
mostrando-me a espantosa imagem do Pecado.

Anderson Braga Horta. Soneto Antigo

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!

Mario Quintana

domingo, 25 de abril de 2010

Vinho de Rosas

Dançamos, mareados de há séculos. Deslizas nos acordes dos inconfidentes e que tais. Eu, noutro balanço, faço-me de ti dolente como um Shadow Dancer. O lençol branco, branco, branco, estampa um Óscar Niemayer. O seu traço matricial, quase em linha de água. Sergey Eiseintein fez o mesmo com os seus filmes. Orson Wells esboçava-os também. Nós cá estamos. Parfum, parfum. Dançamos. Cada milímetro de chão é terra batida sem sentido. Mas com sentimento. Tu és filha do sussurro e eu, prole, destes ventos tristes. Vário outro lugar que não aquele. Noite barroca, noite também aqui antiquíssima. De campanários mudos e sisudos. De suspiros De siso consentido ao riso breve. Ó telhados das Gerais, ainda outrora fostes à morte dos ilustres, permitis ora que dancemos pelos umbrais. Mareados de vinho e de viagem. De todos os longínquos mares do corpo. Epopeia dos arfares, que estes ares são, para nós, o inebriar das horas. Inebriemo-nos. Em verso livre, tudo livre. Mareados em seu reverso…

sábado, 24 de abril de 2010

Depus a máscara e vi-me ao espelho

Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volta à personalidade como a um términus de linha.

Álvaro de Campos

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Molho de Manel Antône

A substância, que se entorna para a boca
Quando tão louca de coentros, leguminosa
Ou, ao que se toca, quão perigosa nuvem
De viagem que fizemos,
O que demos em destemor,
O que te faltaria por comer
O dizer-te dengosa, com primor
O resto sendo nós
O molho de nós...em troca!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Molho de São Nicolau

De tuas mãos a beleza brota
suave, cadente e aromatizada

Comer, beber, rezar
Poesia comestível

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Se

Se não houvesse
mar, nem vento,
nem flor, nem planta,
nem lar, nem gente?

E tudo o que é
deixasse de ser:
o dia e a noite,
o macho e a fêmea,
a dor e o gozo.

E as estrelas fossem
palavras sem nexo
e o tempo vazio
de vozes e gritos

Haveria Deus,
sem mais,
amando coisa nenhuma,
para si mesmo
sábio e santo.

Sonhador solitário,
sonhando que sonho?
Sem mundo, só Ele,
redondo como um zero.

Arménio Vieira

A maçã no escuro

(...)
UM pouco espantada, o calor da tarde então envolveu-a, inquieto, pesado. Nada se transformara no campo que continuou cheio de imóvel sol. No entanto por um instante a moça não o reconheceu e não se reconheceu, e se se olhasse ao espelho veria grandes olhos olhando-a mas não se veria. Com a acuidade da estranheza, notou na própria mão uma veia que havia anos não notava, e viu que tinha dedos magros e curtos, e viu uma saia cobrindo os joelhos. E sob tudo o que ela era, sentiu alguma coisa: sua própria atenção. Um pouco aflita, olhou em torno. Por uma obscura necessidade de preservação, estava procurando recuperar no campo aquele minuto em que ela ousadamente aceitara amar o homem: procurava recuperar o minuto para destruí-lo. Mas, estonteada, talvez soubesse que também a necessidade de destruir amor era o próprio amor porque amor é também luta contra amor, e se ela o soube é porque uma pessoa sabe. Procurou, desesperada e ofendida, aquele minuto que já agora nunca mais ela saberia se fora fatal a ponto de submetê-la – ou se nesse minuto ela própria fora tão extremamente livre que, numa gratuidade que já era pecado e que depois se pagava, ela o apontara.

Procurou recuperar o instante para destruí-lo, mas isso foi penoso e inútil. Pois tudo acontecera rápido demais. E a moça ficou apenas com o seguinte: com um balde cheio de caroços de milho, sem ter sequer contra o que lutar.

E tão abandonada, e tão solitária, como se tudo o que no futuro se fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória que há muito já se perdera para sempre entre as marteladas. Essas marteladas que a moça, agora emergida e espantada, ouviu mais fortes e mais próximas, fatais, fatais, fatais. Sua estranha liberdade: ela escolhera ir de encontro ao fatal. Era a gravidade pela qual esperara a vida toda. De novo um senso de tragédia a envolveu. E, estranhamente, dentro desta ela era apenas anônima.

Olhou então as moscas sobre a roseira. A graça do que ela estava vivendo encheu-a de modéstia cristã, e ela humildemente procurou apoio moral nas moscas azuladas e a rosa trêmula pela mosca que acabara de deixá-la trêmula. Depois que por um instante o mundo inteiro se tornara seu cúmplice, a moça fora largada por sua própria conta.


A maçã no escuro, Clarice Lipector.
. Clarice Lipector.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Ortônimo

Quando lavro um poema
Me louvo e me alquebranto
Eu me apodero do espírito
De Álvaro de Campos

Em mim boiam detritos
Do sangue português
E o transe mediúnico
De Antônio Mora

Em Rafael Baldaia
Me vejo por inteiro
A voz e o coração
De Alberto Caeiro.


Dimas Macedo